O Livreiro de Cabul (Asne Seierstad)


O livro remete às crônicas de viagem do século XIX, pois traz seu quinhão de pitoresco e exótico na narrativa do cotidiano de uma família afegã, mas sem cair na esteriotipação que nasce dos preconceitos. Asne é uma estrangeira em meio a uma cultura mal-compreendida e estranha ao ocidente, por isso o encanto e a surpresa do olhar forasteiro estão lá, mas ela se permite viver a rotina de seus anfitriões e olhá-los com o máximo de isenção, sem contudo perder o calor da tão buscada “humanização da notícia”. 

A jornalista norueguesa Asne Seierstad conheceu Sultan Khan em Cabul, em novembro de 2001, após a queda do Regime Taliban. Depois de passar seis semanas nas montanhas de Hindu Kush, ao lado de comandantes da Aliança do Norte, dormindo no chão e viajando a pé, a cavalo e na boleia de caminhões, foi um alívio conhecê-lo e poder relaxar e conversar sobre literatura. Livreiro proeminente, pertencente a chamada classe média local, Sultan Khan havia sido preso, teve sua livraria destruída e diversas obras queimadas por comunistas, por mujahedins e pelo taliban. Em todas as ocasiões, se recuperou e seguiu em frente, alimentando o desejo de ser útil a seu país através do desenvolvimento da literatura. 

Convidada a jantar em sua casa, a autora pôde conhecer sua família: mãe, esposa, filhos, irmãos e sobrinhos, que dividiam um apartamento de quatro cômodos em uma região que ainda se recuperava dos horrores da guerra. Apesar do ambiente descontraído, as mulheres pouco falavam, o que instigou sua curiosidade. Teve então a ideia de escrever um livro sobre esta família – se não pobre, como a maioria das outras, ainda assim pode-se dizer que típica, por estar impregnada dos costumes e das crenças vigentes. 

Admitida de boa vontade como hóspede, passou três meses observando a rotina de Sultan e suas duas esposas, a madura Sharifa e a jovem Sonya, de 16 anos; seus filhos Mansur, Aimal e Eqbal, que trabalhavam 12 horas por dia nas livrarias do pai e não podiam ir à escola; suas filhas Shabnam e Latifa, sua mãe Bibi Gul, seus irmãos Yunus, Shakila, Bulbula e Leila, e seu sobrinho Fazil. 

Ela acordava pela manhã, entrava na fila para o banheiro, tomava o café, usava a burca para sair. Com os homens viajou, e acompanhou-os eventualmente à livraria. Com as mulheres foi a casamentos, a visitas, às compras, acompanhou seus afazeres domésticos. De todos ouviu relatos e queixas sobre seus sonhos, expectativas e frustrações a respeito de suas vidas particulares e a esperança de tempos melhores, entre guerras de tribos locais e as imposições de um chefe de família que, embora sendo letrado e denominar-se liberal, se impunha soberano sobre o destino dos membros da família. 

Sem esconder a opressão vivida pelas mulheres afegãs durante o governo do talibã, tema largamente explorado na literatura e amplamente mostrado na mídia, ela investe em esmiuçar outro ângulo da mesma questão, revelando que as relações de gênero no Afeganistão são bem mais complexas do que sonha a vã filosofia maniqueísta da cultura ocidental. Os homens de lá também vivem oprimidos, tanto por regimes que cerceiam as liberdades civis, quanto pelo peso da tradição cultural.