A Obra
Logo no primeiro capítulo, o
leitor precisa da ajuda do dicionário para saber o que é um “amanuense”, ou
captar o sentido de frases ou expressões como “as insinuações malévolas da
alcovitice vilã”. E o “víspora”? Será que todo jovem reconheceria nesse jogo um
precursor do bingo atual? E “phaeteon”, “caiporismo”, “redingote”, “coxia” (no
sentido de calçada), “botica”? E o tratamento de “vossemecê”?
No caso de A normalista, outro
problema de linguagem se coloca: o regionalismo. Além de ter de deslocar a sua
imaginação e a sua compreensão no tempo, o leitor se vê diante de expressões
restritas ao local em que se desenrola a história do romance. Nesse caso
específico de A Normalista, em Fortaleza, no Ceará, mas expressões que também
podem ser de uso corrente em todo o Nordeste.
O professor e pesquisador
literário M. Cavalcanti Proença escreveu que Adolfo Caminha “teve a preocupação
de se não tornar pomposo ou oratório, o que abriu lugar para muito material de
linguagem regional de estilização do coloquial”.
Assim, recolhemos os exemplos
“bichinha”, “rapariga de família”, “o peru era uma excelente bebida”, e mesmo
ditos populares como: “pela cara se conhece quem tem lombrigas”, “sem tugir nem
mugir”, e muitos outros.
Na verdade, Adolfo Caminha não
insiste em demasiado nas palavras de cunho regional, o que fazem outros
escritores, para dar uma “cor local” a histórias ambientadas em lugares de fala
bem característica.
Surge, ainda, uma terceira
dificuldade para a compreensão imediata do texto, pela utilização de palavras
eruditas, pouco usadas na comunicação quotidiana das conversas, do jornal, da
televisão. Por exemplo: “seródia”, “rótula”, “tabernáculo”, “estiolando”,
“almiscarado”.
Mas tudo isso, vocabulário em
parte antiquado, regional ou erudito, não deve desestimular o jovem a
prosseguir na leitura começada. Literatura também é este enriquecedor contato
com o que ainda não sabemos, mundos distantes do nosso, aberturas para o
desconhecido.
E a história? O enredo? Também
deve o leitor fazer um esforço para entender a problemática, a tensão e o drama
que se desenrola dentro do contexto da época e do local onde foi situado o
romance.
As reações dos personagens às
situações por eles vividas há 100 anos são, certamente, retratadas de forma
diferente caso fossem escritas nos dias de hoje.
No entanto, o leitor deve
deixar-se envolver por essa atmosfera regional do passado, que Adolfo Caminha
descreve com minúcia realista. Josué Montello, em seu ensaio A ficção
naturalista, afirma que A normalista “sobressaía pela transplantação fiel e
natural da vida da província e vigor na fixação dos temperamentos e dos
caracteres”.
O romance relata as muitas
tristezas e poucas alegrias de uma jovem que é entregue por seu pai ao
padrinho, para criá-la. Ela é uma menina normal, que estuda, que tem uma amiga
confidente, um pretenso namorado de nível muito superior ao seu e,
desgraçadamente, é engravidada pelo padrinho e acaba casando-se com um alferes
da polícia.
O pano de fundo é uma cidade
provinciana do século passado, cheia de preconceitos e maledicências. A jovem
Maria do Carmo, personagem principal, que dá nome ao romance, sofre as
conseqüências desse meio mesquinho, que não oferece oportunidades de um
crescimento interior nem alternativas de vida.
Uma história vulgar, passada numa
cidade atrasada e vivida por personagens medíocres, sem horizontes nem futuro.
Mas, graças ao talento do
escritor Adolfo Caminha, acontece o milagre da criação literária: o texto se
ilumina de uma aura de beleza e continua atraindo, ao longo dos anos, a atenção
e o interesse de gerações e gerações de novos leitores.
Neste romance de 1893, a
normalista Maria do Carmo é o pretexto para Adolfo Caminha apresentar aos
leitores sua visão da Fortaleza de finzinho do século XIX.
De um lado, o povinho miúdo: o
pequeno funcionário público, a mulher que vendia rendas, o barbeiro, o
guarda-livros, o lenhador e o alferes. Na outra banda, o governador da
província, o coronel Souza Nunes, seu filho Zuza - estudante de direito - o
jornalista José Pereira, o diretor e os professores da escola normal.
A fraqueza do nexo lógico
sentimental ou de qualquer natureza entre as várias peripécias da vida de Maria
do Carmo sugere que Adolfo Caminha não conta simplesmente a história dela para
distrair seus leitores: é a propósito da vida da normalista que ele vai
delineando quadros da vida da capital cearense: uma aula na escola normal, o
footing no passeio público, uma festa de casamento, um serão familiar, etc...
Nesta espécie de painel de
costumes, o autor parece querer demonstrar ao leitor toda a mesquinha sordidez
da vida social na Fortaleza de seu tempo.
O mau humor para com a cidade é
transparente, e costuma ser apontado pelos críticos e biógrafos de Adolfo
Caminha como uma espécie de vingança: o autor jamais teria perdoado seus
conterrâneos por estes lhe terem criticado os amores adúlteros e escancarados
com a mulher de um colega.