Missoula (Jon Krakauer)


A pequena cidade de Missoula fica no estado americano de Montana, com pouco mais de setenta mil habitantes é lar da Universidade de Montana e do famoso time de futebol americano da universidade, o Grizzly, que já conquistou diversos campeonatos nacionais. Para nós brasileiros é difícil entender a paixão pelo futebol americano universitário, mas os jogadores são tratados como astros, ganham bolsas de estudos, patrocínios, muitos se tornam profissionais de elite e estão acostumados a receber tratamento diferenciado. 

Entre 2010 e 2012 a cidade foi abalada por diversos escândalos de estupro no que ficou conhecida como uma “epidemia de estupros”, com diversos casos envolvendo jogadores do Grizzly, o que enfureceu muitos dos moradores e fãs do time. Nessa época estatisticamente não ocorreram mais estupros em Missoula do que o esperado para uma cidade universitária, sequer mais do que a média nacional, mas quando o jornal local, o Missoulian, fez diversos artigos denunciando os casos de estupro, a imprensa nacional se envolveu no caso trazendo junto o Ministério da Justiça. Nesse período muitas das vítimas resolveram se manifestar e superaram o próprio medo na esperança de que, indo até a polícia, os acusados fossem presos e assim evitassem que outras mulheres fossem agredidas. 

O livro quebra três mitos fundamentais sobre o estupro: que o criminoso é o homem que sai de uma moita mascarado para agredir uma vítima aleatoriamente, a grande maioria dos casos de estupro ocorre com pessoas que a vítima conhece; que as vítimas de estupro raramente agem da maneira que um leigo esperaria antes, durante e depois da agressão, comportamentos bizarros são a norma, há diversos casos em que a vítima poderia simplesmente gritar para que alguém próximo a ajudasse mas ficaram paralisadas de medo, e depois do ato podem agir normalmente por algumas horas e só perceber o que ocorreu mais tarde; e que há muitas denúncias falsas de estupro, apenas uma pequena fração das pessoas que vão à polícia denunciar um estupro estão mentindo, até pouco tempo policiais usavam como base um estudo incorreto que dizia que até 50% das denúncias de estupro eram falsas.

Krakauer não escreveu o livro como a história da cidade, nem como uma chata exposição de dados. Krakauer entrevistou as vítimas, os acusados, policiais, promotores, júris, leu milhares de páginas de documentos oficiais e ampla bibliografia para condensar em uma obra na melhor tradição de “A sangue frio”. Krakauer deu ênfase em quatro casos principais que ilustram as principais possibilidades do que pode ocorrer com uma vítima de estupro depois da agressão. Infelizmente para ser exato ao expor cada caso o autor tem que ser explícito nas descrições, então a leitura pode ser realmente pesada, mas mesmo assim o livro em momento algum é arrastado ou perde o foco. 

O mais chocante em todo o livro é descobrir de novo algo que já sabíamos: que vítimas de estupro são vistas com ceticismo, julgadas e consideradas imediatamente culpadas pelo crime que sofreram. A maioria fica envergonhada com o que sofreu e prefere que ninguém fique sabendo do fato para evitar humilhação ainda maior. Das poucas vítimas que procuram a polícia e são encaminhadas para a procuradoria só uma fração vai a julgamento e depois disso só alguns dos acusados são condenados (a maioria nos casos em que há confissão). Ou seja, mesmo para as vítimas que procuram justiça só uma fração tem desfecho satisfatório, e só após um longo e doloroso processo judicial que intensifica ainda mais o trauma. 

Em resumo, o sistema judiciário é o pior lugar possível para uma vítima de estupro. 

Apesar de todos os problemas, que não são poucos, o Brasil tem avançado em políticas para as mulheres com a Delegacia da Mulher, a Lei Maria da Penha e a caracterização do feminicídio como crime hediondo. Em comum com os Estados Unidos ainda falta mudar a mentalidade da população para deslocar a culpa da vítima para o agressor.