Os dois irmãos (Oswaldo França Júnior)


No início do século XX, Manaus, a capital da borracha, recebeu estrangeiros como o jovem Halim, aprendiz de mascate, e Zana, uma menina que chegou sob a asa do pai, o viúvo Galib, dono de um restaurante perto do porto. Halim e Zana vão gerar três filhos: Rânia, que não vai casar nunca, e os gêmeos Yaqub e Omar, permanentemente em conflito. O casarão que habitam é servido por Domingas, a empregada índia, e mais tarde também pelo filho de pai desconhecido que ela terá, o Nael. Esse menino — o filho da empregada — será o narrador. Trinta anos depois dos acontecimentos, ele conta os dramas que testemunhou calado. Dois irmãos é a história de como se faz e se desfaz a casa de Halim e Zana. 

Na tentativa de buscar a identidade de seu pai entre os homens da casa, Nael narra os acontecimentos que lá se passam, testemunhando vingança, paixão e relações arriscadas. É por meio de seu ponto de vista que o leitor entra em contato com Halim, o pai, sempre à espera da decisão mais acertada diante dos abismos familiares; com a desmedida dedicação da esposa Zana ao filho preferido Omar; com o trauma de Yaqub, o filho que, adolescente, foi separado da família; com a relação amorosa entre Rânia e seus irmãos; com a vida simples e cheia de renúncias da mãe Domingas.

O romance tem como centro do enredo a história dos dois irmãos gêmeos Yaqub e Omar (o caçula) e suas relações com a mãe, o pai e a irmã.
A história se inicia com a volta de Yaqub, que por ordem do pai, fora enviado com treze anos ao sul do Líbano um ano antes da 2ª Guerra, no intuito de aliviar os atritos entre os irmãos. Considerado frágil e demasiadamente problemático, Omar fica no Brasil, solidificando-se assim a superproteção iniciada na infância.

Cinco anos mais tarde, a volta de Yaqub marca a existência de uma nova pessoa: um jovem calado e cheio de mistérios que escondiam os segredos de sua permanência fora do país. Sozinho, segue para São Paulo, onde, recusando a ajuda financeira dos pais, forma-se em Engenharia Civil e se casa de forma misteriosa, comunicando a família por meio de um telegrama. Enquanto Yaqub trilhava os caminhos do sucesso, Omar se perdia em bebedeiras, noitadas e sucessivos escândalos. Ao ser enviado a São Paulo para tentar obter o êxito do irmão, descobre que ele se casou justamente com a jovem Lívia (paixão de ambos desde a infância) e causadora de uma séria briga entre os dois. Omar, então, faz desenhos obscenos nas fotos do álbum de casamento do irmão, apertando ainda mais os laços de inimizade entre os dois. Em seguida, rouba dinheiro do irmão e foge para os Estados Unidos.

Um dia Halim (o pai) morre e, pouco tempo depois, Omar faz amizade com o indiano Rochiram, que pretendia construir um hotel em Manaus. Zana, na tentativa de unir os filhos e desejosa de que abrissem uma construtora, escreve a Yaqub que ela vai à cidade a negócios, ignorando a participação do irmão. Ao sentir-se traído, Omar espanca Yaqub, mandando-o para o hospital. Inicia-se, então, uma verdadeira caçada que se encerra com a prisão e condenação do caçula a dois anos e sete meses de reclusão. 

O indiano Rochiram, vendo seus negócios fracassarem, exige que a irmã dos gêmeos, Rânia, venda a casa em que vivem para pagamento das dívidas. Surge, assim, no local, a Casa Rochiram, uma loja de quinquilharias importadas de Miami e Panamá. Nael fica com um pequeno quadrado no quintal, ao qual Rânia denominou herança.

Durante todo o desenrolar da história, Nael (o filho da empregada) lutava ao lado da mãe, assoberbado, sem muito tempo para os estudos. Sente-se, com isso, injustiçado. Nunca desistiu de arrancar dos membros da família a identidade de seu pai, que sabia estar em um dos gêmeos. No jogo de interditos, juntando os cacos do passado, Nael se empenha em descobrir a verdade e, somente após trinta anos (quando quase todos já estão mortos) é que parece motivado a olhar para as personagens. 

De Domingas, com quem compartilhava o quartinho nos fundos do quintal, o narrador Nael nos diz que esta é uma mulher que não fez escolhas. Aparentemente, não escolheu nem mesmo o pai de seu filho. Domingas, nutrira no passado uma intensa paixão por Yaqub, filho honesto e dedicado ao trabalho, mas fora estuprada violentamente por Omar, figura agressiva e contraditória, desprovida de qualquer traço de responsabilidade. Assim, torna-se um enigma para Nael saber quem é seu pai, se ele é fruto do amor ou da violência. 

A princípio, a história parece estar centrada na relação entre ambos, mas logo se percebe que ela é apenas um pretexto para que o narrador encontre a si mesmo, a partir da descoberta de sua real paternidade.

Características: 

O livro Dois Irmãos, lançado em 2000, é marcado pela questão da identidade, que perpassa toda a cultura pós-moderna, especialmente a literatura, pois representa a busca do próprio ser humano, que se sente, hoje, como um nômade, um incessante exilado, onde quer que esteja. Este traço é ainda mais acentuado nesta obra, povoada por personagens que deixaram sua pátria para tentar no Brasil uma vida nova, e por seus descendentes, que ainda não se sentem à vontade no lugar que ocupam.

Milton Hatoum (um dos grandes escritores do Brasil) faz os dramas da casa estenderem-se à cidade e ao rio: Manaus e o Negro transformam-se em símbolos das ruínas e da passagem do tempo. E, pela voz de um narrador solitário, revive também os tempos sombrios em que as praças manauaras foram ocupadas por tanques e homens de verde. Esses tempos foram responsáveis pelo destino trágico de um grande personagem do livro: o professor Antenor Laval.

O fio que guia a construção desta identidade é a memória, praticamente a protagonista da produção literária de Milton Hatoum, pois é ela, bem como sua eventual ausência, que orienta esta narrativa. “Dois Irmãos” também é a obra mais explorada e analisada deste autor (Milton Hatoum) que aqui desenvolve os temas já presentes em relato de um “Relato de um Certo Oriente”, embora de uma forma menos rebuscada e mais singela, o que propicia ao leitor uma compreensão maior de sua temática.

Tudo se passa em uma residência situada em um bairro próximo ao porto de Manaus. Aí o narrador presencia as tramas urdidas no seio de uma família importante, que envolvem afetos ardentes, revanche, relacionamentos perigosos. O leitor entra em contato com este universo através do ponto de vista de Nael, que tudo vê da ótica de sua própria classe social, que molda nitidamente sua vivência cultural.

À medida que tomamos conhecimento dos mundos tão próximos e tão diferentes onde os dois irmãos se movem, sentimos que o envolvimento do homem com o destino do seu irmão é algo a que ele não pode fugir. Há entre eles uma espécie de predestinação de solidariedade. E, ao terminarmos a leitura, percebemos bem claramente o quanto é inútil, a qualquer um de nós, esforçar-se para ignorar o seu irmão.

O livro termina assim: “ – Deus, o que faço para esquecer o meu irmão?”

Pertencemos à mesma humanidade e a sorte de cada um está sempre ligada à sorte do outro, não importa a que distância nos encontramos nem quão diferentes são os nossos caminhos. Tal como as histórias dos personagens bíblicos Caim e Abel e Esaú e Jacó, Os dois irmãos narra os encontros e desencontros de duas pessoas que se comunicam não apenas com palavras mas, principalmente, com gestos, olhares e até mesmo com o silêncio. São buscas diárias, assim como todos nós para conviver com as diferenças.

 • O livro está na terceira pessoa do singular do indicativo.
 • Há ausência dos nomes a que se refere O Homem e o Irmão. Ex: “O Homem disse à sua mulher...”, “ O Homem acompanhou seu irmão...”.