O caso
de Abelardo e Heloísa é uma história de Amor das antigas, anterior a Romeu e
Julieta, do século XII para ser mais preciso. Pouco
sabemos de verdade sobre este Amor entre professor e aluna se sequer se
existiu. O livro em si, Correspondência de Abelardo e Heloísa * além de
um breve estudo inicial, nos apresenta cinco epístolas - gênero muito difundido
na antiguidade latina - trocadas entre os famosos "amantes", as quais
juntas costuram um tecido de uma apaixonante colcha de casal medieval, sem
rasgá-lo ou remendá-lo por completo. Ao contrário, deixam dúvidas descobertas
tão atrozes que inúmeros estudos e hipóteses são bordados há quase 1000 anos.
Enfim, um belíssimo texto no sentido pleno.
A primeira das cartas é, na verdade, uma
confissão de Abelardo a um amigo. Toda a história dos infortúnios é contada
longa e complacentemente: das aulas (e confusões) de filosofia que o professor
ministrava nas incipientes escolas medievais, dos primeiros encontros furtivos
com a bela e jovem Heloísa ao trágico episódio da castração do protagonista
(sim, castração!) e o longo e conseqüente arrefecimento de uma
"concupisciência literária" amaldiçoada na obra. O gênero epistolar e
a tragédia da emasculação podem parecer desestimulantes ou desagradáveis
(principalmente aos homens…) mas, ao contrário, a prosa é por demais envolvente
e impetuosa. O tom íntimo e confessional da carta, bem como a retórica e
erudição do autor - exageros de linguagem característicos destes tempos
"barrocos" - cativam e inebriam, ainda que desconfiemos da soberba do
protagonista em suas confissões, ora puramente arrogante, ora calorosa: "Sob
o pretexto de estudar, entregávamos inteiramente ao amor. As lições nos
propiciavam esses tête-à-tête secretos que o amor anseia. Os livros permaneciam
abertos, mas o amor mais do que nossa leitura era o objeto dos nossos diálogos;
trocávamos mais beijos do que proposições sábias. Minhas mãos voltavam com mais
freqüência a seus seios do que a nossos livros. O amor mais freqüentemente se
buscava nos olhos de um e outro do que a atenção os dirigia sobre o texto"
[1].
Heloísa coloca sua colher na obra quando recebe e
lê por acaso a carta endereçada ao amigo de Abelardo. Responde-lhe então com o
fervor e a paixão do amor feminino, mas um amor já contido e amargurado pela
desgraça dos infortúnios que lhes afligira (certamente, muito mais a ele!), um
amor já em princípio de revolta, tamanha submissão religiosa por ela aceita -
ambos dedicam-se à vida monástica após o fracasso amoroso. Abelardo recebe e
responde a epístola de sua amada, porém ensaia uma resposta com ensinamentos de
uma frieza tão grande que chega a parecer desdém aos pedidos de boa notícia que
Heloísa tanto lhe rogava. Aí ela "roda a baiana" na quarta carta - um
reconhecido ponto alto da obra.
Ela confessa-lhe um amor inimaginável, supremo e
irrestrito, acima do Deus a quem ela serve por obrigação do pedido de Abelardo,
unicamente como prova de amor incondicional a seu amado terreno. Assim, Heloísa
profere vitupérios ao destino (a deusa Fortuna, para a cultura latina),
à sabedoria, à prudentia, à temperança, à castidade e a todos os valores
que lhe parecem falsos por terem lhes conduzido à infeliz ruína amorosa -
resumo de sua vida conjugal. E o aparato filosófico e bíblico esquenta o
conflito entre intelecto monástico e mente pecaminosa, caliente em
diversas passagens: "Os prazeres amorosos que juntos experimentamos têm
para mim tanta doçura que não consigo detestá-los, nem mesmo expulsá-los de
minha memória. Para onde quer que eu me volte, eles se apresentam a meus olhos
e despertam meus desejos. Sua ilusão não poupa meu sono. Até durante as
solenidades da missa, em que a prece deveria ser mais pura ainda, imagens
obscenas assaltam minha pobre alma e a ocupam bem mais do que o ofício. Longe
de gemer as faltas que cometi, penso suspirando naquelas que não pude
cometer" [2]. Nem os homens nem
mesmo as mulheres escapam a suas vociferações ("As mulheres não poderão
então jamais conduzir os grandes homens senão à ruína" [3]) - argumento a favor da manipulação e
falsidade da própria obra.
Abelardo encerra neste livro o conjunto das
correspondências com uma carta consoladora. Uma espécie de tratado que defende
os valores sacrossantos do matrimônio (pois resignou-se a acreditar que seu
casamento fora um atentado ao pudor - ah, se eles imaginassem a lascívia do
mundo de hoje…), uma contra-argumentação sólida dos pontos fortes expostos por
Heloísa que se assemelha a um primeiro tratado de pura retórica. E digo "neste
livro" e "primeiro tratado" pois parece haver continuação desta
seqüência de epístolas, de essência puramente filosófica, diferente destas
apaixonantes cartas - tema de novos tratados para um outro livro. Para os mais
eufóricos com o cinema, há uma adaptação de 1988 deste caso de amor para as
telas, o filme Stealing Heaven (traduzido no Brasil como Em nome de
Deus), que, além das cores reluzentes, não guarda a mágica das palavras,
ainda que conte quase a mesma história…
Há um encaixe perfeito entre as epístolas (ou coesão
do conjunto, um discurso compacto e persuasivo, segundo Duby [4]) que nos faz questionar não só a
autenticidade da correspondência mas também o propósito monástico de tais
escritos. Há um ambiente cristão misturado a valores pagãos, o que tempera a
imaginação com muito misticismo medieval. Uns se questionam: houve mesmo
tamanho desencontro e sofrimento nesta tragédia, no sentido medieval do termo (ação
com final infeliz), como nos lembra Zumthor no prefácio do livro. Há a
valorização da tradição latina em confronto com o ideal cavaleiresco que surge
no período e inúmeros outros apontamentos. Enfim, muito já se falou e ainda é
possível falar sobre esta facinante história de amor de tão longes tempos. E
uma infinidade de leituras permite também uma inesgotável gama de análises -
proposta que foge do objetivo deste curto ensaio. Como este amor fracassou ou
por quê Abelardo foi castrado? - estas ciladas da curiosidade ficam ao leitor e
leitora que desejam saber mais de uma história de Amor que vale a pena ser
conhecida.