Publicado em 1936, Angústia, de Graciliano Ramos, um dos
autores mais importantes do Modernismo, é um dos romances mais ricos que a
Literatura Brasileira produziu, pois consegue passear tanto pelo campo social,
quanto pelo existencial, psicológico e até metalingüístico.
Os fatos acontecem durante o primeiro governo de Vargas,
pois o narrador faz referências aos crimes após a revolução de 1930. Predomina
o tempo psicológico, pois o que prevalece durante a leitura é a ação interior,
os pensamentos do protagonista. O enredo se arrasta moroso, de forma bastante
aborrecido e aborrecedor, confirmando o título da obra.
A ação acontece em Maceió, capital de Alagoas. Além de ruas,
cafés e casa de prostituição, predomina o espaço doméstico, em que se pode
notar a decadência.
Primeiramente, pode-se interpretar a obra como reveladora da
crise resultante da mudança de sistema, o que se vê pelas transformações que se
processaram geração após geração, de Trajano, senhor de terras que fora poderoso,
passando por seu filho, Camilo, que sedimenta a derrocada, terminando em Luís
da Silva, o narrador, fruto de todo esse declínio.
Nesse contexto, o conflito que se estabelece entre o
protagonista e Julião Tavares, este tomando daquele a posse da afeição de
Marina, pode ser entendido como representação de uma nova ordem que se está
estabelecendo e para a qual Luís da Silva estava completamente inadaptado.
Dois são os temas centrais. Se entrelaçam a leviandade e
fraqueza moral da mulher e o poder da corrupção do dinheiro.
Personagens:
- Luís da Silva, protagonista e narrador, intelectual frustrado que sonha sempre que vai escrever e ficar famoso com suas obras. Tem aversão aos abastados. Complexado, tímido, acha-se feio, não consegue aceitar os amores e sensualidade dos outros, julgando tudo grosseiro e animalesco. No entanto, vive querendo sentir o cheiro das mulheres na rua e pensando indecências como ele mesmo diz.
- Trajano, avô do protagonista, fazendeiro em tempos antigos.
- Camilo, pai do protagonista, pessoa rude que para ensinar o filho a nadar enfiava-o dentro d'água, segurando por um braço, até quase se afogar.
- Marina, vizinha, namorada do protagonista. Moça vaidosa e superficial, interesseira e vazia.
- Julião Tavares, antagonista de Luís da Silva. Sujeito gordo, vermelho. Era literato e bacharel. Reacionário e católico. Aproveitando-se de sua condição econômica, seduz as moças e depois as abandona, até que é assassinado por Luís da Silva.
- Moisés figura muito interessante. É um judeu que não sabe cobrar, morre de vergonha de ter que cobrar o amigo Luís.
- Vitória, criada de Luís da Silva, tem 50 anos de idade, cheia de pelancas no pescoço. Tem pêlos no buço e verrugas escuras. É muito feia.
- D. Adélia, mãe de Marina. Mulher sardenta, pessoa humilde.
- Seu Ramalho, pai de Marina. Pessoa quieta. É ele quem censura o comportamento da filha.
Resumo:
Luís da Silva recorda acontecimentos do passado, é o
oprimido tendo tudo em seu histórico caminhando para o seu rebaixamento. Além
de ser preferido por Marina sem qualquer justificativa, tem um histórico de
vida recheado de dificuldades. Com a morte do pai, vê-se desamparado, vivendo
de favor de casa em casa. Parte, tornando-se retirante, chegando a dormir nos
bancos de praça e a pedir esmolas. Até que vira um humilde funcionário público,
o que lhe dá um equilíbrio precário, pois se atola em dívidas, aumentadas com
as despesas iniciais para o enxoval do casamento que havia assumido. Mora numa
casa decrépita em uma vizinhança mais decrépita ainda, exageradamente
preocupada em cuidar da vida alheia. Tem como empregada uma senhora cheia de
manias, que acompanha pelos jornais com paixão as chegadas e partidas de navios
e enterra seus trocados no fundo do quintal. Os acontecimentos que lhe vêm na
lembrança têm a ver com pessoas que já morreram ou com a morte delas, como por
exemplo, o próprio pai, Camilo, e o avô Trajano. Entre as pessoas de quem ele
se recorda duas são insistentes e estão ligadas a fatos mais recentes da sua
vida: Marina e Julião Tavares. Aos poucos dá para conhecer a história de como
ele conheceu Marina, sua vizinha, como esta o conquistou. Chegou a pedi-la em
casamento, mas isso não se realizou porque Julião Tavares apareceu e roubou
Marina de Luís. Julião não se casou com ela. Depois de engravidá-la, ele á abandonada.
Marina aborta o filho.
Luís da Silva estava sufocado com a idéia de ter sido
abandonado, indignado com o fato de Marina ter sido largada pelo cortejador, o
que apressou nela um processo de decadência que culminou até no recurso
criminoso do aborto, o protagonista atinge o ponto de ebulição quando toma
conhecimento de que Julião Tavares estava impunemente de caso novo. De maneira
doentia vigia os passos do seu oponente, até que numa madrugada surpreende-o
voltando da casa da amante recente. Com a corda, que não saía do seu bolso,
estrangula-o. Deixa-o pendurado numa árvore, a simular um enforcamento.
Tal delito, como se percebe, mostrava-se fruto de uma
angústia em que se via Luís da Silva.
Após o crime, Luís recolhe-se em sua casa e fica febril,
delirando. Um mês depois se recupera e começa o livro em meio às reflexões, de
mãos feridas, que não consegue realizar o seu serviço, pois em todo canto vê o
rosto de Julião Tavares e se lembra do esganamento. Acompanhando-o em seu
mergulho na rememoração de todo o contexto que gerou o assassinato, vemos que é
uma sondagem existencial que vasculha a memória do narrador o que faz de
Angústia uma obra que antecipa o romance intimista ou o psicológico. Nesse
ponto, é interessante ver como os fatos vão puxando outros e compondo, no final
de uma narrativa impressionantemente em nada caótica, o todo de uma
personalidade em que o aspecto psicológico interpenetra-se ao social.
Trecho escolhido:
Não me continha: saía de casa e andava à toa por estas ruas,
fatigando-me em caminhadas longas. O inverno tinha começado, quase sempre caía
uma chuvinha renitente. Ia sentar-me num banco da Praça dos Martírios, e os
pingos que tombavam da folhagem das árvores molhavam-me a cabeça descoberta e
escaldada. A sentinela cochilava no portão do palácio. Ao pé do morro, pedaços
da igreja fechada apareciam entre os ramos. Um barulho horrível de motores e
rodas. Automóveis a roncar. Todos queimavam gasolina misturada com perfume.
Depois um rádio começava a trovejar óperas. O cheiro e o som tornavam-se
insuportáveis. Esforçava-me por esquecer o nariz e o ouvido, abria os olhos. A
sentinela cochilava encostada ao fuzil. Serviço pau. Um pobre homem dormindo em
pé. Acordava, escancarava a boca, via com tédio as grades do jardim, o hall
deserto, a escada ao fundo, vermelha. O tapete vermelho da escada me dava
impressão desagradável. Podia ser de outra cor. As luzes do farol mudavam de
minuto a minuto, branca, vermelha, branca, vermelha. Porque não aparecia uma
terceira cor? Aquilo era irritante, mas o farol me atraía. Pelo menos variava
mais que a sentinela, tinha mais vida que a sentinela.
Nesse excerto, Luís da Silva está atormentado com a idéia de
Marina ir de carro à ópera na companhia de Julião Tavares. As lembranças da
moça vestida de forma chique e seu perfume misturando-se à gasolina do veículo,
além do vermelho, cor predileta dela e sua marca registrada, vão-se fundir de
forma obsessiva, ecoando em vários elementos da praça. O mundo externo, na
verdade, passa a ser visto filtrado e reinterpretado pelo transtorno mental do
narrador.