Análise da obra
O romance
Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, faz parte do Realismo e do Naturalismo. A
história de paixão e tragédia não é produto de fantasia romântica, mas baseada
num fato real que escandalizou o Rio de Janeiro no século XIX.
Caminha constrói a
partir de um fato verídico, uma ficção forte, ousada, muito atual até os dias
de hoje. Fez isso para chocar e se vingar da sociedade hipócrita que o rodeava.
Bom-Crioulo,
publicado em 1895, é dividido em 12 capítulos, onde a ação se passa na segunda
metade do século XIX, no Rio de Janeiro. Destacam-se o espaço aberto,
normalmente dias claros e quentes, o mar aberto, e o espaço fechado do
quartinho de Amaro.
Boa parte da força e
da eficácia de Bom-Crioulo está no manejo lúcido que o autor faz desses
conflitos, escolhendo o quê, quando e como contar deste verdadeiro enredo de
notícia de jornal sensacionalista. A narrativa é simples e direta, mas tem as
suas manhas: não entrega o jogo facilmente, cria suspenses, vai e volta no
tempo, de modo a dar a cada momento, a cada situação, a sua atualidade e a sua
história, o seu desenvolvimento próprio. Assim, o enredo central se desdobra em
alusões a muitas outras histórias; e o dia-a-dia do século XIX brasileiro se
insinua a cada passo, fazendo ecoar as falas e as ações das personagens
centrais.
A intenção do romance
resume-se em acompanhar as personagens em seu movimento, como se fosse o
expectador que registra a evolução do drama alheio sem interferir. Nele tudo
caminha numa ordem inalterável até o epílogo, com uma supervalorização do
instinto sobre os sentimentos, do animal sobre o racional.
Foco narrativo
Narrado em 3ª pessoa,
por narrador onisciente, percebe-se que as inúmeras descrições que aparecem no
romance, condizentes com a estética naturalista que privilegia a observação
meticulosa dos fatos, buscam não se confundir com a história, nem com as
personagens.
Preso aos ideais do
escritor naturalista — exatidão na descrição, apelo à minúcia e culto ao fato —
o narrador conta a história de modo linear, gradativo, utilizando-se de uma
linguagem clara, direta, objetiva, com poucos objetivos. O que será importante
são os fatos narrados e não a opinião que se pode ter sobre eles. Não há,
portanto, da parte desse narrador, qualquer julgamento moral das personagens.
A história quase se
narra por si, pela exposição direta dos fatos, que vão montando a estrutura
narrativa, ou seja, a história das três personagens envolvidas num caso de
amor: Amaro, Carolina e Aleixo.
Temática
O tema principal é a
dificuldade do amor homossexual, centrado na relação entre o negro Amaro e o
jovem e bonito Aleixo. Faz presente também o tema da mulher madura que deseja
um amante jovem. A originalidade de Bom-Crioulo se manifesta no triângulo
amoroso sobre o qual se sustenta. Tradicionalmente, um triângulo amoroso é
composto por dois homens em luta por uma mulher, ou duas mulheres que disputam
o mesmo homem. Em Bom-Crioulo, Amaro e Aleixo são marinheiros e, acima de tudo,
como tal se comportam, favorecendo a anulação das diferenças étnicas, que se dá
não pela ascensão do negro fugido, mas pelo rebaixamento de ambos à condição de
prisioneiros do mesmo sistema e do “vício”. Por fim, o terceiro do triângulo é
uma mulher que atua como homem, pois conquista Aleixo em vez de ser
conquistada. Adolfo Caminha colhe ao vivo, de sua experiência como oficial da marinha,
o material do romance.
Este tema do romance,
o homossexualismo, manifesto na construção do triângulo amoroso, é tratado com
crueza e sem nenhum indício de preconceito pelo escritor naturalista, que vê no
vício um objeto de estudo que deve ser esclarecido e compreendido.
O homossexualismo,
encarado no romance como vício ou perversão, é tratado, portanto, através de um
olhar naturalista e, conseqüentemente, limitado: não há o enfoque mais
subjetivo dos sentimentos despertados; não há autonomia do caráter: as
personagens estão acorrentadas às leis deterministas (não há drama de
consciência ou mesmo drama moral). Há uma resposta mecânica, instintiva aos
fatos e, nesse sentido, o livro perde um lado da questão, o que não esmaece sua
força e valor literário.
Outro tema é a
problemática da vida dos marinheiros, que ficam a maior parte do tempo longe da
terra e de mulheres, o sofrimento dos castigos corporais impiedosos e
rigorosos. Este é a temática que se entrelaça com o tema central.
Tempo e espaço
O romance se passa em
dois espaços: no mar, a bordo de uma corveta, e na Rua da Misericórdia,
localizada nos subúrbios do Rio de Janeiro, nos fins do século XIX. Os dois lugares
são descritos em seus aspectos mais degradantes e negativos, ressaltando a miséria
daqueles que aí vivem.
A abertura do romance
se faz com uma detalhada descrição da corveta, local inicial da ação.
Por meio de uma
descrição minuciosa e da riqueza de detalhes que ajudam a compor o ambiente
externo, percebe-se como o autor naturalista se debruça sobre o meio que terá
um papel decisivo no comportamento das personagens.
O ambiente de bordo é
marcado pelo trabalho duro e por uma vida sem privacidade, o que possibilita a
eclosão das mais diversas perversões. O ajuntamento de homens favorecia a
promiscuidade entre seres que vivenciam a solidão da reclusão da vida no mar e
que, sobretudo, sentiam a falta de liberdade, vítimas de um sistema duro e
cruel - a vida na Marinha:
Mas, havia ordem para
não desembarcar, e Bom-Crioulo, como toda a guarnição, passou a tarde numa
sensaboria, cabeceando de fadiga e sono, ocupado em pequenos trabalhos de
asseio e manobras rudimentares. - Diabo de vida sem descanso! O tempo era pouco
para um desgraçado cumprir todas as ordens. E não as cumprisse! Golilha com
ele, quando não era logo metido em ferros... Ah! Vida, vida!... Escravo na
fazenda, escravo a bordo, escravo em toda parte... E chamava-se a isso servir á
Pátria!
Por esse trecho,
pode-se notar uma crítica implícita a Abolição dos Escravos que parece não
passar de uma ilusão, já que os homens provenientes das camadas mais baixas da
população continuam a ser explorados.
Num segundo momento,
a história se desloca para a terra, mais precisamente para um quarto na Rua da
Misericórdia, onde Amaro e Aleixo, após terem se conhecido no navio, vivem o
ápice e o declínio de seu relacionamento.
Ao retratar o espaço
urbano, Adolfo Caminha fala a respeito de um tipo de moradia muito comum no Rio
de Janeiro, durante o final do século XIX: as habitações coletivas. Os
habitantes dessas moradias eram brancos, mulatos e mestiços, sempre pessoas
exploradas. Ao redor dessas habitações, há a presença de negociantes
portugueses em ascensão, como o açougueiro que sustenta D. Carolina, e que se
aproveitam, de algum modo, da miséria dessas pessoas.
Desse modo, o
comportamento das personagens está condicionado pela pobreza do ambiente que as
circunda e que, por sua vez, é decorrente do momento histórico por que passava
o Brasil, durante o Segundo Reinado.
Personagens
Em Bom-Crioulo,
Caminha constrói com segurança e coerência o personagem Amaro, mulato dominado
pela paixão homossexual, que o leva para caminhos sadomasoquistas à perversão e
finalmente ao crime. O autor soube manejar as cenas e personagens com
naturalidade.
As personagens de um
romance naturalista raramente são dotadas de alguma profundidade psicológica.
Muito próximas dos tipos, também chamados de personagens planas, não evoluem no
decorrer da narrativa, de forma que suas ações apenas confirmam as poucas
características que as definem.
Amaro: protagonista, ex-escravo convocado para a marinha. Trata-se de um homem
muito forte, com trinta anos de idade e que não conseguiu realizar-se sexualmente
com as mulheres. Duas tentativas deram-lhe grande decepção e o deixaram
frustrado. Só conseguiu consumar o ato com o jovem Aleixo. Apresenta certa
profundidade psicológica, mas que é totalmente envolvido por sentimentos e
instintos que o dominam, impedindo-o de perceber com clareza a situação
conflituosa que vive. Algumas vezes, surgem percepções esparsas, mas nada
suficientemente forte para modificar o destino do negro, movido pela paixão.
Por um lado, Amaro é extremamente forte fisicamente. Sua força provém do
trabalho escravo e depois do trabalho na Armada, em que se engajara após ter
fugido da fazenda. Os castigos físicos que lhe foram impostos, tanto pelo
feitor quanto a bordo, tornaram-lhe resistente e lhe deram a energia de um
animal brioso. A força do negro é realçada pelo narrador, numa das cenas
iniciais do romance, por meio da descrição de uma cena em que Amaro está sendo
punido com a chibata: — Uma! cantou a mesma voz. — Duas!.., três!...
Aleixo: grumete, belo rapaz de olhos azuis, que embarca no sul. Tem quinze anos
e mexe sexualmente com Amaro. Cede às investidas e caprichos do crioulo, mas
quando aparece ocasião troca-o por uma mulher. Isso o leva ser assassinado por
Amaro, por causa do ciúme. Aleixo surge desde o princípio como o oposto de
Amaro: branco, fisicamente fraco e pueril, subjugado pelas circunstâncias e por
quem lhe é mais forte — será assim com Amaro e com Carolina. O ar de submissão
de Aleixo vai transfigurando-se, ao longo da narrativa, numa espécie de
esperteza camaleônica. Nada sabemos sobre seu passado, a não ser que era filho
de uma pobre família de pescadores que o tinham feito entrar para a Marinha em
Santa Catarina. A ligação com Amaro oferece-lhe um novo mundo, bastante
diferente daquele de sua origem, e que lhe propicia, acima de tudo, favores e
proteção.
D. Carolina: amiga e rival de Amaro. É amiga de Amaro por tê-lo salvo em um assalto
e inimiga por depois conquistar o namorado do crioulo. D. Carolina era uma
portuguesa que alugava quartos na Rua da Misericórdia somente a pessoas de
“certa ordem”, gente que não se fizesse de muito honrada e de muito boa, isso
mesmo rapazes de confiança, bons inquilinos, patrícios, amigos velhos... Não
fazia questão de cor e tampouco se importava com a classe ou profissão do
sujeito, Marinheiro, soldado, embarcadiço, caixeiro de venda, tudo era a
mesmíssima cousa: o tratamento que lhe fosse possível dar a um inquilino,
dava-o do mesmo modo aos outros. D. Carolina revela-se, desde o inicio, uma
mulher de negócios, cuja mercadoria era seu próprio corpo. Teve seus revezes e
conseguiu se reerguer, observando como poderia lucrar com os outros, já que
também lucravam com ela. No entanto, vive só.
Herculano: marinheiro dotado de certa melancolia.
Relaxado, tinha as unhas sujas. Evitava a companhia dos outros. Foi preso e
castigado por ter sido apanhado se masturbando.
Agostinho: o guardião. Homem de grande estatura, reforçado, especialista em dar
chibatadas. Ama sua profissão, por isso permanecia a maior parte do tempo a
bordo.
Santana: marinheiro que sofreu castigo por ter brigado com Herculano. Era gago,
chorava com facilidade e era manhoso.
Enredo
A obra Bom-Crioulo
não padece das inverosimilhanças de A Normalista, do mesmo autor. Mais denso e
enxuto, apresenta um ótimo retrato da vida de marinheiros durante a 2ª metade
do século XIX, no Rio de Janeiro. A personagem principal, o mulato Amaro, é
bastante coerente em sua passionalidade. Vários episódios do romance também
refletem a própria vivência do autor a bordo de navios, registrando a aspereza
da vida no mar, da brutalidade dos castigos corporais, já denunciados por Caminha
em seu tempo de estudante.
O romance realça pela
originalidade da situação dramática: dois marinheiros - Amaro, apelidado o
Bom-Crioulo, um “latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de
cafre... com um formidável sistema de músculos” e Aleixo “um belo marinheiro de
olhos azuis” - brutalizados e solitários pela vida a bordo de um navio,
afeiçoam-se e entretêm relações homossexuais. Ao desembarcarem na cidade do Rio
de Janeiro, vão viver em um cômodo alugado por uma portuguesa, ex-prostituta,
D. Carolina. Mas o idílio amoroso entre Amaro e Aleixo é interrompido pelo
dever de voltar ao mar.